“São Paulo deve ser destruída”, de Moacir Assunção

15/09/2015 2548 visualizações

Por Cláudia Lamego

No dia 5 de julho de 1924, oficiais tomam os principais quartéis de São Paulo, a Estação da Luz e a repartição do Telégrafo Nacional e atacam o Palácio dos Campos Elísios, sede do governo estadual. Quatro dias depois, em meio a combates com as forças legalistas, o presidente (governador) Carlos de Campos deixa a cidade, rebeldes começam a saquear armazéns e a tomar outros quartéis e pontos estratégicos. No dia 11 de julho, São Paulo começa a ser bombardeada por canhões, principalmente na região da Mooca, Brás, Aclimação, Belenzinho e a Luz. Civis são mortos nos ataques, prédios são incendiados e a população inicia um dos maiores êxodos da história do país. A história dessa revolução, que durou pouco menos de um mês, é contada em detalhes no livro São Paulo deve ser destruída, do jornalista Moacir Assunção, que concedeu a entrevista a seguir.

Na apresentação do livro, você conta que teve os primeiros contatos com as histórias da revolução de 1924 ao fazer reportagens sobre bairros de São Paulo e depois descobriu afinidades e coincidências que o levaram a escrever sobre ela. Qual a contribuição que sua pesquisa, que resultou no São Paulo deve ser destruída, deixa sobre esse fato tão relevante, porém tão esquecido da história da maior cidade brasileira?

Creio que a maior contribuição seja oferecer a possibilidade de amplos extratos da população – principalmente os mais humildes – oferecerem sua versão, em primeira pessoa, dos fatos. Também trouxe uma discussão jurídica que demonstra, por a + b, que houve um crime de guerra naquele fato. Estranho que mesmo São Paulo, onde se deu o bombardeio e os ataques, quase desconheça o episódio. Dizem que os paulistas odeiam Getúlio Vargas por causa da Revolução de 1932 (não há nenhuma praça, rua ou avenida com esse nome na cidade). Talvez devesse, no entanto, detestar Arthur Bernardes que foi, de fato, quem bombardeou a cidade de forma terrível. Procurei usar no livro as lições do grande historiador britânico Edward Thomas Palmer, segundo o qual é necessário ouvir “os de baixo” e não os já muito conhecidos líderes militares e civis, embora estes também apareçam no livro. Os relatos, no entanto, são de carroceiros, agricultores, industriários, gente na base da pirâmide social.

São vários os levantes que entraram para a história do Brasil, com mais ou menos repercussão e estudos consagrados de historiadores e da academia. Você acha que o fato de ter atingido populações mais pobres e em bairros distantes do grande centro da capital, além de não ter mobilizado grande parte da elite, como ocorreu depois em 1932, fez da revolução de 1924 um assunto menos destacado? Se discordar, que outros fatores levaram a esse quase esquecimento do bombardeio a São Paulo?

Acredito que o “esquecimento” é consequência de vários fatores, entre os quais alguns que você cita, como o fato de terem sido atingidos, majoritariamente, pobres e não membros da elite. No entanto, atribuo esse esquecimento seletivo, principalmente, à construção da memória política de São Paulo, que colocou Getúlio Vargas do lado contrário aos paulistas, embora não se possa dizer que o próprio ditador se considerava inimigo de São Paulo. Do lado de Getúlio, estavam os tenentistas, alguns dos quais se tornaram quase interventores em São Paulo. Do lado contrário, estava, quem diria, Arthur Bernardes, e o general Isidoro Dias Lopes, o líder do levante de 1924. A força da Coluna Prestes, que ficou muito marcada no imaginário político nacional, também contribuiu para esse esquecimento sobre a revolta. Há uma pequena produção acadêmica e livresca sobre 1924, mas é infinitamente menor que outros processos, inclusive muito próximos, como a Revolução de 1932.

 Como demonstro no livro, o Exército temia enfrentar um outro Canudos, dessa vez com adversários armados inclusive com armas de destruição em massa, como a artilharia, e optou por uma tática bastante danosa e covarde para enfrentar seus inimigos.

Um dos episódios mais chocantes relatados no livro é o ataque ao Theatro Olympia, que vitimou mais de 50 pessoas, entre idosos, mulheres e crianças. Também chama a atenção o número de civis vitimados ser maior que o de militares envolvidos na revolta. Você levanta a tese de que a região, tomada por anarquistas, operários, comunistas, pode ter sido deliberadamente atacada para se acabar com possíveis focos de revolta. Como classificar esse tipo de ataque preventivo, com o uso de tanques em áreas civis, na história do Brasil?

Isso só pode ser classificado como um hediondo crime de guerra, que foi o que aconteceu. Foi, talvez, a maior batalha em solo urbano da América Latina e demonstrou o uso político do Exército, que vai se acentuar depois. A utilização do chamado bombardeio terrificante, que os exércitos alemães também fizeram uso na I Guerra Mundial é um absoluto despropósito ainda mais sabendo que do outro lado não haviam adversários, apenas civis. Como demonstro no livro, o Exército temia enfrentar um outro Canudos, dessa vez com adversários armados inclusive com armas de destruição em massa, como a artilharia, e optou por uma tática bastante danosa e covarde para enfrentar seus inimigos. Na verdade, a população civil é que foi vítima dessa tática, conforme o demonstram todos os estudos. Quase não houve ataques a instalações militares onde estavam os rebeldes.

O livro informa que a formação do estado policial do país, que veio a ter destaque na ditadura Vargas e depois nos anos da ditadura militar implantada em 1964, começou pouco antes e se desenvolveu muito depois da revolução de 1924, como resposta a ela. Personagens dessas duas ditaduras, como Filinto Müller e Eduardo Gomes, assim como vários outros, participaram do levante de 1924. Em que outros aspectos a revolta dos tenentes em São Paulo é decisiva para se entender a história política do Brasil?

A revolta dos tenentes geraria, depois, dois grupos de tenentes, um mais à esquerda, como Prestes e Miguel Costa, e outro mais à direita, como Filinto Müller, Eduardo Gomes e Juarez Távora. Para o bem ou para o mal os tenentes participaram de todas as revoltas posteriores, como 1930, de alguma forma 1935 e, depois 1964. Eles são uma espécie de patrocinadores da intervenção militar na política. Claro, nada a ver com grupos pouco expressivos e mal informados que defendem a volta da ditadura militar nos dias de hoje, mas não resta dúvidas de que em 1924 começou a se criar o estado policial que surgirá com força no Estado Novo e se definirá de vez em 1964.

A Comissão Nacional da Verdade reconheceu 434 mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar de 1964 no país. Especialistas no período acreditam que possam haver mais vítimas, porém esse número é menor que os 503 mortos e quase cinco mil feridos na Revolução de 1924, que durou menos de um mês. Esses números, em comparação, dão a dimensão da grandiosidade da tragédia em São Paulo, não?

Sem dúvida, assim como o fato de terem morrido pouco mais de 600 paulistas em dois meses de duração da Revolução de 1932 ante 503 mortos em 23 dias de 1924. Foi uma enorme tragédia, que enlutou bairros inteiros. Por muito tempo, isso ficou na memória de gente que comeu ratos e pombos para sobreviver na cidade conflagrada. O uso dos mais modernos equipamentos bélicos da época é outra lembrança fortíssima do episódio.

O número de vítimas em São Paulo pode até ser maior, dados os relatos dos mortos que não foram enterrados em cemitérios e das vítimas que padeceram depois, no presídio do Pará. Você acredita que se possam fazer novas descobertas sobre o caso?

Sem dúvida, ainda há documentos que podem ser verificados para se acrescentar dados novos. Tudo isso, claro, vai permitir que tenhamos um panorama mais claro da tragédia que foi a Revolta (ou Revolução) de 1924. Não consegui encontrar, por ora, novos documentos sobre esse tema específico, mas deve haver ainda coisa não descoberta.

Hoje São Paulo é o estado que lidera com maior força as manifestações contra o governo da presidente Dilma Rousseff. É possível fazer um paralelo entre o momento atual à oposição que o Estado fazia desde a época da revolução de 1932 ao governo Vargas? Há uma linha do tempo possível de ser identificada nessa trajetória de oposição paulista ao governo federal?

Há algumas semelhanças, embora não devamos comparar momentos históricos distintos.  Os atuais protestos, pelo que estamos observando, são promovidos por gente de classe média alta, de viés conservador, e que se orgulha de sua “ascendência paulistana”.  Não era muito diferente em 1932, embora tenha tido maior participação popular naquele movimento do que agora, quando quase não se veem pobres nas ruas e são nos bairros mais ricos da cidade em que ocorreram os panelaços. Seria complicado, no entanto, apontar uma semelhança mais profunda sem incorrer no que chamamos de anacronismo, ou seja, olhar o passado com os olhos do presente.

Por fim, você diz que sua pesquisa não esgotou o tema. Que outros pontos dessa história podem ser aprofundados, a partir da leitura de São Paulo deve ser destruída?

Gostaria de ver um livro sobre a participação das mulheres, das crianças e dos militares rasos no episódio. Creio que teríamos belas histórias para tirar daí. Talvez também um sobre as visões estrangeiras, principalmente da Europa e Estados Unidos, sobre o evento. Lembre-se que São Paulo tinha, na época, enormes comunidades estrangeiras e os países contestaram o uso do bombardeio contra seus nacionais. Acho que também renderiam muitas histórias.Enfim, acho que nenhum tema histórico está esgotado. Sempre é possível encontrar aspectos e material novos. Basta procurar com afinco. Esse é o papel do historiador.