“Pouso forçado”, de Daniel Leb Sasaki

24/09/2015 2664 visualizações

IMG_20150923_223921Por Mariana Moreno

Sucesso de público e de crítica quando foi lançado em 2005, Pouso Forçado, de Daniel Leb Sasaki, foi indicado como finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte. Como jornalista obstinado, o autor continuou a buscar respostas para um dos casos mais emblemáticos de intervenção da ditadura em empresas privadas: a extinção da companhia aérea Panair do Brasil.

Dez anos após a primeira publicação, Sasaki brinda os leitores com um livro praticamente novo com quase o dobro de páginas, apoiado em novas pesquisas e em documentos inéditos, acessados por meio da Lei de Acesso à Informação e posteriormente abertos na Comissão Nacional da Verdade.

A Comissão da Verdade conseguiu tornar públicas as arbitrariedades aplicadas contra a Panair e lhe permitiu confirmar suspeitas originadas durante a produção da edição de 2005? Como as novas informações foram incorporadas à edição ampliada?

Em 2012, tive acesso à mesma base documental que seria, meses depois, estudada pelos membros da Comissão Nacional da Verdade. Esse material, obtido por meio da Lei n° 12.527, de 2011, que regula o acesso à informação,não apenas confirmou suspeitas antigas, como trouxe à luz, pela primeira vez, fatos até então desconhecidos fora do âmbito militar. Por exemplo, revelou detalhes sobre alguns mecanismos utilizados para desmoralizar um dos acionistas majoritários da Panair do Brasil, Celso da Rocha Miranda, perante a opinião pública e o mercado:tornaram-no réu em processos criminais forjados. Devassas fiscais, espionagem, falsificação de documentos ― tudo isso aconteceu, numa perseguição sistemática que se estendeu por anos, com o objetivo de responsabilizá-lo pelo fim de sua própria empresa. O acusado conseguiu, por fim, provar sua inocência em plena Justiça da ditadura, em decisões finais e irrecorridas. Mas a desonra perante a história oficial permaneceu.Por outro lado, nenhum agente jamais foi punido pelos crimes cometidos contra a Panair, contra ele e contra os funcionários.

A importância da atuação da CNV foi, precisamente, colocar alguns “pingos nos is”, restaurando os fatos para a sociedade civil. No relatório final, publicado em dezembro de 2014,seus integrantes atestaram que a Panair foi extinta por motivos políticos e não financeiros, e que esse processo contou com a participação de agentes da União e instituições como o SNI (Serviço Nacional de Informações), beneficiando concorrentes. Como a Comissão tem a prerrogativa de se manifestar pelo Estado brasileiro, foi a primeira vez que o país admitiu ― pública, ainda que indiretamente ― responsabilidade por aquela injustiça.

Todo esse conteúdo novo foi incorporado à nova edição de “Pouso forçado”, inclusive, em apêndices com transcrições de excertos ou documentos inteiros. As evidências são tão fartas e alarmantes, que julguei importante dividi-las com os leitores. O livro volta às prateleiras significativamente ampliado ― com 488 páginas versus as 276 da edição original.

As famílias de ex-funcionários da Panair acompanharam a audiência pública? Como elas reagiram?

Sim, participaram. A audiência pública foi organizada pela CNV para colher informações sobre o caso e foi um marco importante para os ex-funcionários, acionistas e suas famílias. Nunca antes eles tiveram os relatos e experiências documentados por uma comissão dedicada a apurar violações de direitos. Naturalmente, ficaram muito emocionados ― inclusive, por lembrar dos colegas que já não estão mais vivos para testemunhar esse resgate histórico.

Em entrevista recente com o ex-ministro Delfim Netto, publicada no livro, você mencionou que houve alterações de documentos no judiciário para adulterar o patrimônio líquido da empresa, mas que até então não se sabia o responsável. Algum dos documentos tratou desta questão em particular?

Os documentos recém-abertos focam a atuação de uma Comissão de Investigação Sumária criada pelo Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em 1969, com o objetivo definido de encontrar meios para processar Celso da Rocha Miranda por crime de sonegação fiscal. A Panair já estava no chão havia quatro anos e eles ainda não tinham conseguido comprovar nenhuma acusação levantada contra o acionista ou sobre as condições financeira e operacional da empresa que justificassem o fechamento. Àquela altura,a situação do governo no caso estava bastante precária, então lançaram mão do expediente para tentar “pegá-lo” na marra.O material também revela uma tentativa de enquadrá-lo e aos ex-diretores da companhia no Ato Complementar nº 42, que autorizava o confisco de bens de pessoas naturais ou jurídicas.

A adulteração a que me referi na entrevista aconteceu ainda em 1965 esobre isto já havia informações na primeira edição. Quando a Panair foi fechada, os advogados enviaram um laudo contábil ao Supremo Tribunal Federal e ao Juízo da falência, prestando todas as informações necessárias sobre a real situação da companhia. A conclusão do contador que assinava o documento, Armando Simões de Castro,era de que os acionistas e diretores eram inocentes em relação aos crimes falimentares a eles imputados. Acontece que antes de a via do juiz chegar ao seu destino, ela foi interceptada e teve sua redação toda modificada. Trechos inteiros foram suprimidos e quase todas as informações que inocentavam a gestão da Panair foram alteradas para prejudicá-los. Como os advogados da companhia tinham fotocópias da certidão do Supremo com a versão original do laudo, entraram com uma ação e conseguiram comprovar a falsidade. Nos autos do processo, deixaram registrado: “Destruíram a empresa para atingir homens. Agora, querem destruir homens para obstar a recuperação da empresa”.

Foram respondidas as duas questões centrais que permeiam o caso: a criação de um decreto-lei para impedir a concordata suspensiva da empresa e o impedimento de pagar aos credores, mesmo a companhia tendo recursos para isso?

Isto já havia sido documentado,denunciado e respondido na Justiça em 1969, ano em que o governo emanou três decretos-leis (n°s 474, 496 e 669) com o propósito específico de obstar o restabelecimento da Panair, mesmo tendo a companhia comprovado todas as condições de ressurgir. Duas tentativas de acordo ― uma proposta pelo governo Figueiredo em 1979 e outra durante a gestão FHC, em 1996 ― mostram, em si próprias, que a União tem ciência de sua responsabilidade pelos atos que determinaram a extinção da empresa. Na minuta desse segundo documento, por exemplo, consta, textualmente: “o governo federal baixou o decreto-lei nº 669, de 3 de julho de 1969, dispondo que ‘não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou infraestrutura aeronáutica’.Não foi preciso escrever o nome da Panair no decreto-lei, que passou a constituir-se uma das teratologias do ordenamento jurídico brasileiro”.

Não restam dúvidas: ao longo de todas as etapas do processo, a Panair comprovou que seu patrimônio era muito superior às dívidas, que ela tinha bases jurídicas sólidaspara funcionar quando teve as linhas suspensas pelo Estado e que prestava ao país serviços indispensáveis e únicos em toda a aviação civil e militar, como o de telecomunicações aeronáuticas. Veja que apesar de parada durante 30 anos, de ter parte do patrimônio dilapidada pelos síndicos da falência, de ter a infraestrutura desapropriada pela União e de pagar até mesmo montantes indevidos, a empresa saiu da falência em 1995 com um saldo de caixa equivalente a US$ 10 milhões.

Outro tema inquietante a respeito da destruição da Panair é o fato de que um dia após a cassação da empresa a Varig estava pronta para assumir os voos internacionais em rotas até então inexploradas pela empresa gaúcha. A comissão apresentou respostas que invalidassem as desconfianças de favorecimento do governo brasileiro ao presidente da Varig à época, Ruben Berta?

A substituição foi imediata, aconteceu no mesmo dia. À época, a Varig operava linhas internacionais de longo percurso apenas para os Estados Unidos, enquanto a Panair voava para vários países da África, Europa e Oriente Médio. A CNV não chegou a se aprofundar nessa questão, mas não pairam dúvidas sobre a preparação prévia da companhia gaúcha para assumir os voos e sobre o favorecimento. Durante a pesquisa para essa nova edição, conversei sobre o assunto com José Carlos Fragoso Pires, que atuou como assessor informal do brigadeiro Eduardo Gomes no Ministério da Aeronáutica entre 1964 e 1965, destacado para funcionar especificamente no caso. Ele não apenas me revelou ser o autor da ideia de cassar as linhas ― algo já indicado por alguns jornais da época ―, como confirmou que envolveu Ruben Berta, presidente da Varig, e José Bento Ribeiro Dantas, da Cruzeiro do Sul, meses antes do fechamento da concorrente. Fragoso contou que defendia a tese da “não-essencialidade” da Panair e que, para comprová-la, considerou vital preparar as rivais, de modo que não houvesse qualquer interrupção nos voos brasileiros. Ao longo dos anos, vários funcionários da Varig também afirmaram que souberam do assunto por Berta antes de o fato se consumar.

Mas essas empresas se beneficiaram também de outras formas. Transferidas as linhas e decretada a falência da Panair, o Banco do Brasil, nomeado síndico, enviou um representante para promover a liquidação do patrimônio no exterior. Esse sujeito, Adolpho Schermann, transferiu os contratos de locação da maior parte dos escritórios da Panair à Varig e o fez gratuitamente ou por preço interior ao da avaliação oficial, dispensando-se da obrigação de fazer concorrência. Com as lojas, passou também irregularmente à empresa gaúcha móveis, utensílios e outros bens da falida. Nos autos, deixou registrados, sem qualquer cerimônia, agradecimentos à diretoria da Varig por tê-lo hospedado com conforto em hotéis pela Europa durante esse processo e pelo “valioso auxílio” ― expressão dele ―, nos assuntos de caráter jurídico, prestado por Aguinaldo de Melo Junqueira Filho, advogado e diretor da própria Varig. Na tentativa de não deixar rastros, ainda queimou ilegalmente documentos da Panair em diversos países.As contas do síndico nunca foram aprovadas e o banco acabou retirado do processo por causa do prejuízo causado. Meses depois, os aviões DC-8 e Caravelle e os hangares no Galeão foram arrendados à Varig e Cruzeiro, por pressão,por preço irrisório, mesmo diante de ofertas decentes de aéreas estrangeiras. A Varig ocupou essa estrutura em terra antes mesmo do arrolamento e arrecadação de bens da massa falida.

A destituição de direitos de uma empresa privada é uma abordagem não convencional das mazelas da ditadura, automaticamente associada às prisões e aos episódios de tortura. É possível afirmar que Mário Wallace Simonsen, dono de um conglomerado de empresas, entre elas a Panair, foi também um perseguido político do regime militar?

Mario Wallace Simonsen, que era sócio de Celso da Rocha Miranda na Planejamento e Administração Guanabara ― a holding que controlava a Panair e a oficina Celma ―, já estava sob ataque midiático alimentado por inimigos políticos e concorrentes poderosos desde 1963, portanto antes mesmo do Golpe. Os testemunhos deixados pelos seus advogados em uma série de documentos enviados ao antigo Tribunal Federal de Recursos apontam que esses adversários,daqui e lá do exterior, incomodados como crescente poder econômico do empresário,aproveitaram-se da tomada de poder pelos militares e da “patologia” no Judiciário para destrui-lo. Conseguiram relativamente rápido.Desmoralizado depois de uma CPI que juntou documentos comprovadamente falsificados para incriminá-lo por um suposto golpe que teria lesado os cofres públicos em US$ 23 milhões, Simonsen teve todos os seus bens sequestrados apenas um mês depois do fechamento da Panair. Faleceu destituído de tudo em questão de semanas.Sua imagem foi massacrada e a pilhagem material a partir dali foi assombrosa.Entendo que ser acusado e condenado com base em provas falsas e ter os direitos à propriedade privada e a trabalhar violados devem ser considerados formas de tortura e perseguição.

A manobra criada para impedir a tentativa de reerguimento da Panair foi a mesma que dificultou um novo fôlego para a Varig em 2006?

Celso da Rocha Miranda e outras pessoas ligadas à Panair deixaram relatos de que o decreto-lei n° 669, de 1969, que obstou definitivamente o retorno da companhia, foi providenciado junto ao governo pelo jurista Adroaldo Mesquita da Costa. Esse senhor,um dos dez sócios-fundadores da Varig, funcionava como consultor-geral da República do marechal Castello Brancona época da cassação das linhas da concorrente, em 1965. Com um detalhe: era também tio do Costa e Silva, que, empossado, baixaria o tal decreto-lei. Acontece que essa legislação autoritária ficou em vigor mesmo após a redemocratização do país e, ironicamente, nos anos 2000, impediu a própria Varig de tentar reorganizar-se protegida dos credores por meio de uma concordata. A distorção só foi contornada com a inclusão das aéreas no escopo da lei nº 11.101, de 2005, que regula a recuperação judicial ― e a Varig foi a primeira grande empresa nacional a apoiar-se na chamada Nova Lei de Falências.

A Panair continua existindo no imaginário coletivo não só dos seus ex-funcionários e familiares, mas de grande parte da população que acompanhou a consolidação da empresa como símbolo da aviação nacional. Considerando o fato de a empresa ainda existir como pessoa jurídica, você acredita que a marca ainda pode ressurgir de alguma forma?

Desde que se reabilitou como pessoa jurídica, ao levantar a falência, em 1995, a Panair tem se concentrado na série de ações judiciais que propôs contra a União.Elas se referem, principalmente, às desapropriações e à ocupação irregular do patrimônio. O atual presidente da empresa, Rodolfo da Rocha Miranda, filho do Celso, afirma que não quer ressuscitar a companhia como transportadora. E ele tem motivos razoáveis para pensar assim. O cenário da aviação comercial mudou completamente desde os anos 1960. O setor está cada vez mais competitivo, depende de altíssimos investimentos e oferece margens baixas de retorno ― isso, quando dá lucro, pois está sempre pressionado pelo câmbio e pelo preço do combustível, entre outras variáveis externas, como meteorologia e situação geopolítica. No fim das contas, Rocha Miranda não deseja expor a marca da Panair, hoje quase mítica por tudo o que representou e que ainda representa, ao risco de ser manchada por uma operação mal sucedida. Não faltam exemplos de reencarnações toscas que falharam, como os das emblemáticas bandeiras norte-americanas Pan Am e Braniff.

Como foi o processo de elaboração de um livro investigativo no formato de jornalismo literário?

Olha, eu sou bem “jornalistão”, objetivo e factual nos meus textos e, francamente, não tenho grandes aspirações literárias. Na verdade, costumo ler livros técnicos e acadêmicos no meu tempo livre, e não romances. Mas o que senti em relação a esse assunto da Panair é que se não arriscasse uma narrativa mais humanizada, com a reconstituição de personagens, diálogos e cenas, talvez não conseguisse sensibilizar tanto o leitor. Felizmente, quando saiu pela primeira vez, “Pouso forçado” foi muito bem recebido pelo público e pela crítica, sendo indicado finalista do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Reportagem. Foi uma surpresa, de verdade. Eu tinha apenas 23 anos e jamais havia escrito uma linha profissionalmente. Hoje, sei que me aventurar fora da zona de conforto foi a melhor decisão.

Qual tem sido o retorno dos leitores sobre a nova edição? Houve casos de pessoas que só tomaram conhecimento do livro agora?

Tenho sido procurado pelos leitores no Twitter e Facebook, sempre com um retorno bastante positivo. A maior parte deles é jovem e não pegou a primeira edição. Por outro lado, as redes sociais, que ainda engatinhavam naquela época, hoje me aproximam de públicos maduros em mercados menos centrais que não acompanharam o lançamento original. Estou recebendo mensagens, por exemplo, de gente do interior do Norte, onde a Panair teve uma importância magnífica, por integrar toda a região amazônica ao resto do país. Fui contatado também por diretores de cursos superiores de Direito e Ciências Aeronáuticas, que querem listar o “Pouso forçado” como leitura obrigatória para seus alunos. Isto é maravilhoso. Formar novas gerações com esse conhecimento, com os fatos recuperados e a história restabelecida, é uma forma de reparar parte do dano causado aos acionistas, funcionários, à Panair e ao próprio país.