Por Carlos Andreazza
O maldito “Minha luta”, de Hitler, cai em domínio público em 2016. Editoras – do Brasil inclusive – já se preparam para lançá-lo.
A Record não o fará. Mas eu – falo por mim, não pela editora – não marginalizo quem o publicará.
A questão é, aliás, um poderoso ensejo para se discutir a função do editor no mundo em que vivemos.
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Não se trata de difundir ou não um livro; porque, afinal, seu texto sempre esteve disponível e é facilmente encontrado na rede.
E aqui surge uma reflexão importante: o editor é um mediador, um intermediário de excelência, e uma de suas funções consiste em – diante de um cenário como este, em que o acesso fácil ao livro é um dado inescapável da realidade – qualificar essa difusão, dar-lhe dimensão histórica, massa crítica, o peso cultural do tempo.
Acredito nisso.
Se o livro existe e se está ao alcance de todos sem qualquer filtro, é, sim, papel do editor entrar em campo, antecipar-se e trabalhar com responsabilidade para que a leitura do texto maldito – já que inevitável – venha acompanhada de todos os cuidados e contextualizações.
É preciso debatê-lo, confrontá-lo, desmontá-lo; não escondê-lo, mitificá-lo – o que sempre tenderá ao efeito contrário.
Se o acesso ao livro de Hitler é facílimo e incontornável, cabe ao editor – do ponto de vista prático – preparar uma edição crítica, comentada, anotada, com a colaboração de historiadores, filósofos e cientistas políticos, que ofereça ao leitor também e fundamentalmente a história de como aquelas ideias terríveis foram aplicadas, e isso inclusive para que tal barbárie jamais se repita.
É preciso destrinchar criticamente, em detalhes, esse conteúdo, se ele fatalmente chega e chegará aos jovens – e isso é papel do editor. Não consigo ver de outra forma.
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Uma vez que uma editora decida publicar “Minha luta”, é para transformá-lo – de acordo com as linhas que tracei acima, e que impõem gastos – num produto comercial, inserido no mercado, e para lucrar com o livro.
Acho muito esquisito lançar-se a um trabalho como este – publicar um livro como este, com a seriedade editorial necessária, com a responsabilidade inerente à escolha de o fazer – para depois destinar os lucros a alguma beneficência.
É até ridículo.
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O editor que não sofre pressões políticas imensas diariamente – e de todos os lados, inclusive de autores – deve se preocupar com seu emprego. É do jogo.
O editor também é um educador.
Se há convicção no trabalho, na linha editorial, no que foi planejado e no que se pretende, na intenção, na vocação pública do que se edita, há também força para resistir e – não digo convencer – ser respeitado.
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Não me sinto à vontade para discutir as escolhas de livrarias, se não aceitarão vender o livro de Hitler etc.; mas, seja por que for, certamente não se tratará de censura.
São empresas privadas e suas decisões precisam ser compreendidas e respeitadas sob o mesmo entendimento – o da liberdade – que permite que qualquer editora publique “Minha luta”.
Que cada um faça suas escolhas – e que arque com as consequências num ambiente de livre iniciativa.