“Moçambique: O Brasil é aqui”, de Amanda Rossi

1/10/2015 2810 visualizações

Por Mariana Moreno

 

foto autora_corDepois de passar seis meses em Moçambique em 2010, a jornalista Amanda Rossi retornou ao país três anos depois para conhecer as iniciativas brasileiras germinadas durante sua primeira visita. Na viagem para a cidade de Moatize, onde ocorria uma manifestação contra as reservas de carvão da Vale, ela teve algumas surpresas. O avião que a levaria da capital Maputo para Moatize era da Embraer, a Igreja Universal de Reino de Deus estava presente na cidade e entre os manifestantes havia ex-funcionários da Odebrecht. “O Brasil estava por todos os lados”, escreve a autora em Moçambique: O Brasil é aqui.

O que motivou sua primeira visita a Moçambique em 2010?  Como esta experiência no país incentivou seu retorno e a investida em um livro- reportagem sobre a presença brasileira na região?

Eu tinha muita vontade de viver na África para conhecer o continente além dos estereótipos de guerra, fome e crise. E queria começar pela África portuguesa. Em 2010, quando cursava o último ano de jornalismo na USP, apareceu a oportunidade, arrumei as malas e fui para Moçambique. Foram cerca de seis meses no país e milhares de quilômetros rodados. Nesse período, a minha maior descoberta foi uma outra faceta do meu próprio país. O Brasil estava fincando bandeira no continente, com cada vez mais negócios e projetos de ajuda. Mas se sabia muito pouco a respeito no próprio Brasil. Então, resolvi escrever o livro. Para minha sorte, Moçambique era simplesmente o país mais interessante para mostrar a chegada do Brasil na África.

O caso de Moçambique ajuda a entender as relações do Brasil com a África como um todo?

Sem dúvida. “Moçambique, o Brasil é aqui” não é uma leitura sobre um único país africano, mas um retrato geral das nossas relações com a África. Para entendermos sobre elas, precisamos olhar para Moçambique, porque ali estão seus principais elementos. Se quisermos saber sobre os projetos de cooperação do governo brasileiro na África, Moçambique é o país africano com o maior número de iniciativas, entre elas as mais importantes, como uma fábrica de medicamentos contra o HIV. Se quisermos ver como o Planalto apoiou negócios de empresas brasileiras, nada melhor do que observar a história do maior empreendimento do Brasil na África, a exploração de carvão da Vale. Para conhecer de que forma os bancos públicos financiaram as construtoras brasileiras na África, novamente precisamos nos voltar para Moçambique, onde foram criados novos arranjos que podem ser replicados em outras regiões africanas daqui para frente. A maior dívida que o Brasil perdoou na África é moçambicana. Moçambique ainda é o país africano que mais despertou o interesse do agronegócio brasileiro. Além disso, foi um dos países mais cobiçados pelo Brasil para apoiar a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Para fechar a lista, Moçambique é o local onde mais se faz objeções aos negócios do Brasil.

Durante a elaboração do livro, a Lei de Acesso à Informação foi aprovada. Este recurso colaborou de alguma forma para as apurações?

A Lei de Acesso à Informação foi um recurso muito importante na apuração do livro. Diversos documentos, dados e posicionamentos foram obtidos após questionamentos pela lei. São telegramas do Itamaraty que já deixaram de ser sigilosos, dados de financiamentos do BNDES e do Banco do Brasil, volumes de recursos aplicados em projetos de ajuda à África, histórico das operações de perdões de dívidas, respostas de ministérios que não davam retorno via assessoria de imprensa.

Porém, o aspecto mais curioso a respeito da Lei de Acesso, revelado durante a apuração do livro, é o seu efeito indesejado: o aumento do sigilo de alguns documentos do Itamaraty. Em abril de 2012, um mês antes da entrada em vigor do decreto que regulamentou a Lei de Acesso, o Itamaraty ampliou de 10 para 15 anos o grau de sigilo de dezenas de milhares de telegramas. A justificativa foi se adequar à Lei, que não prevê sigilo de 10 anos, mas de 5 ou 15. Assim, as mensagens que abordam a chegada do governo Lula na África só começarão a ser liberadas em 2018. Tive acesso a centenas desses telegramas secretos trocados entre Maputo e Brasília. Eles narram os bastidores da política externa e mostram o apoio do governo aos negócios brasileiros. É um material exclusivo e inédito, distribuído pelo livro.

A vitória da Vale na concorrência da mina de carvão em Moçambique não foi bem recebida pela comunidade internacional. Por outro lado, uma das principais pretensões do lobby do governo brasileiro em Moçambique era conseguir apoio para uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Como você avalia esta contradição?

A comunidade internacional em Maputo desconfiou da vitória da Vale para explorar o carvão de Moçambique. Os telegramas secretos do Itamaraty mostram algumas situações embaraçosas. Na frente de outros diplomatas, a embaixadora da França perguntou para sua par brasileira se a escolha da Vale teria a ver com o encontro entre o presidente moçambicano e Lula, meses antes, em Brasília, quando foi assinado o perdão da dívida de Moçambique. Pouco tempo depois, um representante do FMI sugeriu a existência de uma fraude envolvendo a Vale, em uma importante reunião da comunidade internacional em Maputo – denúncia descartada logo depois.

Mas essa desconfiança não recaía apenas sob o Brasil. A comunidade internacional também não viu com bons olhos a aproximação da China com a África, que significou perda de espaço da Europa, Estados Unidos e Japão. O continente é um território em disputa. É uma das regiões que mais cresce no mundo e as oportunidades estão atraindo diversos países, ávidos por negócios. Além de ser disputada economicamente, a África é cortejada politicamente nos fóruns internacionais, pois tem um enorme peso nas votações – 54 votos e a tradição de se posicionar em bloco. Isso explica o interesse do Brasil no apoio da África para a reforma do Conselho de Segurança da ONU.

Apesar do descontentamento dos moçambicanos prejudicados com o avanço das empresas brasileiras em Moçambique, você diria que a figura do ex-presidente Lula como um líder carismático na África não foi abalada? Ou seja, há um distanciamento entre a imagem do político e as questões relacionadas ao governo brasileiro como costuma acontecer no Brasil em relação à figura dele e a do PT?

Lula tem muito prestígio na África, especialmente entre os líderes africanos mas também entre a população. Em diversas regiões de Moçambique, encontrei desde trabalhadores urbanos até camponeses que conheciam e simpatizavam com “Lula da Silva”, como ele é chamado por lá. Os discursos feitos pelo brasileiro em suas viagens para a África contribuíram para a construção dessa imagem. Neles, o ex-presidente sempre pintou um futuro otimista para o continente, colocando o Brasil à disposição para ajudar, pois também tinha enfrentado os mesmos problemas – o subdesenvolvimento e a miséria. Então, a impressão que ficava do Brasil era a do “povo irmão”.

Porém, conforme os negócios avançam, o Brasil vai se transformando no primo rico, que ajuda, mas também leva vantagem. Até agora, a imagem de Lula em Moçambique foi pouco abalada, mas o ex-presidente não está totalmente blindado. Sua figura está vinculada aos negócios brasileiros e se desgasta à medida que as críticas a eles aumentam. Um taxista que vive na cidade onde vai passar uma ferrovia da Vale, por exemplo, tinha certeza de que Lula era sócio da mineradora e estava lucrando com a operação.

A expansão da presença brasileira na África está alinhada a um processo de estreitamento das relações sul-sul, característica da política externa brasileira do governo Lula. No governo de Dilma Rousseff, no entanto, o Itamaraty assumiu uma postura mais passiva e reativa. Esta diferença de gestão ocasionou mudanças na condução dos negócios e na percepção da população moçambicana sobre a presença do Brasil? 

 Em maio, o ex-chanceler Celso Amorim participou de um evento com diversos diplomatas africanos, no qual ressaltou a aproximação com a África nos anos Lula. Eu estava presente e questionei em público sobre a continuidade dessa política: como Amorim avaliava as relações Brasil-África no governo Dilma. Houve um retrocesso? Eu imaginava uma resposta diplomática, como a que Lula me deu, tentando convencer de que Dilma também fez algo pela África. Mas Amorim surpreendeu: “A resposta para sua pergunta é fácil: não vou responder”. Ou seja, nem ele se atrevia a defender o governo Dilma.

Houve sim diversos retrocessos nas relações com a África no governo Dilma. O orçamento para projetos de ajuda ao continente, por exemplo, despencou já em 2011, quando a presidente assumiu. Os empresários também começaram a chiar. Dilma não ajudava os negócios como Lula e o Brasil podia perder espaço. A presidente, no entanto, não ficou passiva. Tentou criar uma agenda africana e deixou um de seus homens de confiança tocando a ideia. Mas não teve bons resultados. Só não houve um vácuo de presença brasileira na África porque as iniciativas costuradas nos anos Lula seguiram seu próprio rumo. O resultado é que, com menos ação do governo e continuidade dos negócios, estamos deixamos de ser vistos como um ator político e nos tornando cada vez mais um agente meramente econômico – de povo irmão para primo rico.

A disposição dos moçambicanos para protestar foi um dos tópicos da entrevista com Mia Couto. Falando sobre sua experiência pessoal no país, o que você observou em relação a este tema, sobretudo no que se refere aos jovens? Como a juventude moçambicana lida com a presença estrangeira no país?

Os moçambicanos querem participar das promessas de desenvolvimento que estão sendo anunciadas em Moçambique. Eles observam a exploração de carvão da Vale, o interesse brasileiro em produzir grãos, o apetite da China por obras de construção civil, a voracidade internacional em torno de descobertas de gás. E esperam ver um reflexo dessas novas riquezas em suas vidas. No entanto, isso não está acontecendo. Moçambique é um dos países que mais cresce no mundo. Já a quantidade de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza está inalterada – mais da metade do país. Nas periferias das cidades, a situação é pior: a miséria está aumentando. E é justamente ali que está germinando uma insatisfação popular, especialmente entre a juventude. O maior exemplo disso foi uma enorme revolta popular contra o aumento do preço do pão, energia e água, em 2010, convocada por mensagens de celular e liderada por jovens nas periferias de Maputo. Também nas cidades estão ONGs que contestam cada vez mais os projetos internacionais. Uma delas, por exemplo, pediu a revisão dos contratos de exploração mineral – entre eles, o da Vale, acusada de pagar poucos impostos. Se os ganhos dos negócios internacionais não começarem a ser repartidos no país – ou seja, se a vida da população não começar a melhorar como reflexo do desenvolvimento econômico – mais protestos e mais oposição devem surgir.

Durante sua entrevista com Lula, o ex-presidente reforçou que o Brasil deve assumir na África uma postura de parceiro e não de imperialista. No entanto, levando-se em conta as revoltas apontadas no livro, parece que esse ideal não foi alcançado. De uma maneira geral, o povo moçambicano se decepcionou com a atuação brasileira ou há uma divisão de opiniões no país?

Uma parcela do povo moçambicano se decepcionou com a atuação brasileira. Especialmente quem já foi diretamente impactado pelos negócios do Brasil, como as famílias removidas pela Vale e os camponeses que estão temerosos de que o mesmo aconteça com eles após a chegada do agronegócio brasileiro. Também estão ressentidos aqueles que se envolveram com projetos de ajuda do Brasil, cujos orçamentos foram cortados durante o governo Dilma. Mia Couto disse algo muito interessante na entrevista para o livro: os moçambicanos esperavam que o Brasil fosse diferente dos americanos, europeus, chineses. No fim, se revelou igual à lógica dos outros. O resultado foi uma desilusão com o Brasil. No entanto, há moçambicanos que conservam esperança nos brasileiros. Um dos capítulos do livro mostra isso. Nele, conto a história de um grupo de camponeses cujas terras teriam sido irregularmente ocupadas por uma plantação europeia. Mesmo encurralados pela exploração internacional, estavam ansiosos pela chegada dos projetos agrícolas brasileiros. Tinham confiança de que “os irmãos brasileiros” fariam diferentes e apoiariam o povo moçambicano. Eu pressionei tudo que pude, mas nada parecia abalar a fé deles no Brasil.

Em junho, a independência de Moçambique completa 40 anos. É uma democracia ainda jovem. É possível ver claramente no país uma busca de identidade e de autoafirmação?

Moçambique é um país em busca de uma saída. Há quatro décadas, quer e precisa deixar de ser uma das nações mais pobres do mundo. O dilema é que ninguém sabe qual é o caminho para Moçambique chegar lá. Estradas diversas já foram percorridas: Moçambique deixou de ser colônia de Portugal, virou socialista, se transformou em uma economia de mercado, ficou dependente da ajuda internacional dos Estados Unidos e Europa, se abriu para a China e o Brasil. O que resta? Joseph Ki-Zerbo, o maior historiador da África, disse que os africanos foram classificados como figurantes para por em destaque os papeis dos protagonistas, e que era a questão de saber se poderiam ser sujeitos da História. Mia Couto, sem querer, respondeu: a dificuldade dos africanos se pensarem como sujeitos da História “vem sobretudo de termos legado aos outros o desenho da nossa própria identidade”. Nesses 40 anos, muitos países sugeriram e até forçaram as direções moçambicanas. Por isso, meu palpite é que, daqui para frente, são os moçambicanos que devem encontrar o seu caminho, mais atentos às suas dinâmicas internas e menos reféns das pressões externas. Um país não existe sozinho no mundo, mas precisa ter força e determinação para criar o seu próprio espaço. Inclusive para exigir mais das empresas internacionais – brasileiras também – que quiserem fazer negócios em Moçambique.

Para além das influências externas, o que há de genuíno no povo moçambicano que o aproxima do povo brasileiro? E em que as duas sociedades se distanciam?

Somos muito parecidos e somos muito diferentes. Talvez nossa maior semelhança seja a abertura para nos relacionarmos com costumes diferentes dos nossos – isso explica por que brasileiros e moçambicanos criam tantos laços entre si. Também temos em comum a facilidade de nos virar em situações adversas. Estamos sempre dando um jeito, improvisando, fazendo acontecer. Além disso, não podemos nos esquecer de que o sangue africano corre nas veias da cultura brasileira, fazendo com que comunguemos a relação com a música, a dança, as festas populares. E quanto às nossas diferenças? A meu ver, temos uma forma oposta de nos relacionar com o tempo e o espaço que ocupamos. Os moçambicanos têm uma ligação muito forte com a terra onde nasceram, a natureza, os antepassados, espíritos, mitos, tradições e costumes da etnia. Esses elementos regem sua identidade. Já os brasileiros somos resultado da impermanência – da migração e da miscigenação. Há algo que reflete bem essa diferença: os moçambicanos não entendem por que nas ruas do Brasil só se ouça português e querem saber por que deixamos de falar as línguas brasileiras. Os brasileiros, por sua vez, se surpreendem com a diversidade linguística de Moçambique.

Considerando todas as suas vivências no país e as entrevistas com Lula e Mia Couto, como você projetaria o futuro de Moçambique? Para você, quais são os maiores desafios do país?

Eu acredito que a economia de Moçambique vai continuar crescendo e atraindo o apetite de diversos países – inclusive do Brasil. Mas, se esse crescimento não chegar na mesa do povo moçambicano, pode haver mais protestos e mais mobilização por mudança. Isso pode respingar nos interesses das empresas brasileiras, que podem ser convocadas a contribuírem mais com o país. Nem sempre, elas estarão interessadas – a Vale, por exemplo, paga pouco imposto em Moçambique e está tentando pagar ainda menos. O maior desafio de Moçambique hoje é justamente aliar crescimento com desenvolvimento social. E qual é o maior desafio da política do Brasil para a África? A meu ver, exatamente o mesmo. Aliar o desejo de crescimento das empresas brasileiras com a promoção do desenvolvimento social africano. Se o Brasil quiser mesmo ser o “povo irmão”, precisa manter o olho aberto nas atividades das suas empresas no exterior e oferecer mais ajuda à África.

Trechos:

Uma executiva da Andrade Gutierrez, que participou de missões empresariais à África quando Lula era presidente, o definiu de outra forma: um “caixeiro-viajante”. Segundo essa executiva, Lula agia da seguinte maneira durante as viagens africanas: primeiro, questionava o que as principais empresas brasileiras queriam. Em seguida, apresentava a proposta delas a autoridades africanas e colocava os dois lados em contato. Assim, criava-se “um compromisso político” com Lula de que o negócio aconteceria. Por isso, as empresas adoravam as missões empresariais em companhia do petista. Ele era um imbatível fomentador de negócios”.

Entrevista com Lula: “Eu acho que [é] o papel do presidente da República de qualquer país [apoiar as empresas]… O que você acha que faz o rei da Espanha? O Obama, quando ele vem conversar com a Dilma, o que ele quer conversar? Ele quer que a Dilma compre os caças dele. O que você acha que quer o francês? Para que serve o governo senão pra isso? E acho que o Brasil faz pouco isso. O Brasil precisa fazer mais. Eu sinto orgulho de ver empresas brasileiras virarem empresas multinacionais. Eu sinto orgulho! Deveriam estar na África não apenas as empreiteiras brasileiras, as empresas de açúcar brasileiras, de etanol. Acho que deveriam estar o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Itaú, o Santander, o Bradesco. Porque se não for assim esses países vão ficar com os bancos dos países colonizadores.”