“História da chuva”, de Carlos Henrique Schroeder

29/09/2015 3829 visualizações

Por Manoela Sawitzki

 

CarlosB_foto de Thays MagalhaesNa apresentação do livro As fantasias eletivas, Altair Martins descreve Carlos Henrique Schroeder como alguém que “escreve para embaralhar as coisas e os homens”. Em seu novo romance, História da chuva, o escritor catarinense embaralha vida e arte trazendo para a cena o escritor Carlos, seu alter ego, e dois artistas de teatro de formas animadas, Arthur e Lauro. A partir da morte de um deles, envereda mais uma vez pelos territórios da impotência, da dúvida e do fracasso. Desde a primeira página, atrai o leitor para uma cidade inundada pela chuva no interior de Santa Catarina, lá onde vivem também seus fantasmas. Mas também para o universo do teatro de animação, “a experiência mais radical dentro do teatro”, e para uma experiência de contágio, onde vida e arte são uma coisa só.

Moro no interior e estou contaminado por essa paisagem até a última raiz do cabelo. Há um mundo que não está nas páginas dos grandes jornais ou dos grandes palcos ou das grandes editoras, de artistas genuínos que por infortúnios diversos somem da história. Este livro é para eles”, diz Schroeder em entrevista ao blog.

O projeto de História da chuva foi contemplado por um grande edital de criação literária. Um incentivo como esse, para além do suporte financeiro, alterou seu processo de trabalho e escrita? 

Sim. Se não fosse a bolsa e o contrato assinado, que me obrigava a entregar o livro, eu provavelmente desistiria. Já me acovardei algumas vezes diante de uma obra: estou com um romance sobre o poeta Cruz e Souza emperrado, por exemplo, e acho que não sairá. O compromisso fez com que eu não desistisse a cada intempérie que surgia, com que eu abrisse mão de muitas coisas para terminá-lo. E tem também a questão financeira, os recursos que recebi possibilitaram com que eu pudesse ficar mais focado no livro, sem precisar aceitar aquelas toneladas de frilas que equilibram nossas contas. Foi muito importante essa bolsa, em todas as esferas.

Há no livro diferentes camadas, caminhos narrativos que, embora de alguma forma organizados em capítulos, vazam e contaminam uns aos outros. A mesma voz, a de seu alter ego, se desdobra por algumas questões. A morte de Arthur, “a alma de uma das melhores companhias de teatro da América Latina” — uma companhia de formas animadas —, vai aos poucos ocupando um lugar central (ou de escape?) em seu campo de interesse. Para você, o que há nesse personagem que tanto intriga e atrai a voz narrativa, o desejo de desvendá-lo através da escrita de um perfil?

Arthur e Lauro são também a busca de uma imagem: a do artista. As duas epígrafes do livro (Saer e Susanne Langer) tentam até apontar esse caminho, que é tortuoso e infeccioso.  Eu gosto desse palavra, “infecção”, e essa é a questão: onde começa a arte e onde termina o mercado? Onde elas se relacionam e se infeccionam? Realizar o perfil de Arthur seria também catalogar os sucessos e fracassos de um artista, e enfrentar duas perguntas: é possível ser imparcial no campo das artes? Até onde vai a liberdade? Durante muito tempo achei que o teatro de animação era a experiência mais radical dentro do teatro, e escrevi esse livro porque não tinha resposta para nenhuma dessas questões.

Carlos Schroeder, o personagem-narrador, também nasceu no interior de Santa Catarina e é também por esses arredores que os personagens do enredo transitam. Um aspecto chama atenção: o que, para a maioria, é um microcosmos pouco conhecido, o do teatro de bonecos, no livro ganha outra dimensão — da sua circulação e visibilidade por esses interiores até a conquista do “exterior”, o território estrangeiro, representando o grande passo. Mas você investe de forma interessante nesse interior sulista, e parece redimensioná-lo, mover o olhar que geralmente é lançado sobre ele. Foi esse o propósito, mover a ideia do que é tido como “central”?

Acredito que o território do escritor é sempre a palavra, mas meus fantasmas estão sempre por aqui, em Santa Catarina, então escrevo para confrontá-los. Às vezes funciona, outras, nem tanto. O Santiago Nazarian até levantou no ano retrasado o tema da “fuga da cidade” como um recurso dos autores contemporâneos brasileiros: o livro do Galera se passa em Garopaba, os últimos do Nazarian e da Simone Campos também no interior. Não sei se é uma tendência ou não, mas eu moro no interior e estou contaminado por essa paisagem até a última raiz do cabelo. Há um mundo que não está nas páginas dos grandes jornais ou dos grandes palcos ou das grandes editoras, de artistas genuínos que por infortúnios diversos somem da história. Este livro é para eles.

A autoficção tem se revelado um procedimento presente na escrita de alguns autores contemporâneos. O recurso que esteve presente em outras gerações, claro, e poderíamos citar muitos autores do século 20, sobretudo. Mas ele tem sido apontado pela crítica e a academia como algo muito presente na produção atual. Seria possível fazer autoficção de forma dissimulada, como tantos também fizeram, mas você optou por dar seu nome ao personagem. Por quê?

Muito do que está no livro aconteceu realmente: está lá o nome da minha esposa, a forma que nos conhecemos, os meus fracassos no teatro, a minha vida profissional como editor e organizador de eventos, os abusos de ritalina, aqueles dias terríveis das chuvas e quase todos os grupos de teatro citados existem também. Mas há também a infecção, o delírio, a contaminação. O César Aira tem uma linda frase sobre como a literatura é uma forma de não decidir-se sobre o real e a ficção. História da chuva é isso, como aquele aforismo do Kafka que está no livro, uma corda no chão.

Samuel Beckett aparece em História da chuva e também é mencionado no seu romance anterior, As fantasias eletivas. Numa entrevista de 1956, ele diz: “Estou trabalhando com a impotência, a ignorância. Não acho que a impotência tenha sido explorada no passado”. A questão da impotência (do escritor que não termina seu livro, da entrevista frustrada, ou diante de uma relação amorosa turbulenta) está muito presente em seu romance. Esse é também um campo de interesse em especial para você? Ela tem sido suficientemente explorada desde Beckett?

Beckett foi um artista que fez poucas concessões, na literatura, no teatro, foi uma figura central na cultura do século passado e continua uma referência. Na sede da minha pequena editora há um adesivo de seis metros de largura com uma imagem dele. É para onde eu olho quando estou em dúvida sobre algo. É meu deus selvagem. Para mim é impossível pensar a literatura e o teatro sem olhar para sua obra. Mas História da chuva é sobre a impotência em diversos eixos: diante do amor, da rejeição, do desejo, da natureza, da arte e do mercado.

Acho que é bem explorada sim, e autores díspares como Coetzee, Karl Ove e Ben Lerner têm construído sua literatura em torno disso.

Como foi (e tem sido) sua relação com o teatro? Você teve um romance adaptado, certo? Como o Carlos do livro, você também escreveu peças, fundou ou cogitar fundar uma companhia?

Aquilo que está no livro é absolutamente real. Escrevi várias peças e algumas foram encenadas, e também fui produtor de teatro. Mas sofri tanto e me decepcionei tanto que hoje só piso num teatro como espectador, coisa que amo fazer.

E o que lhe atraiu para o universo do teatro de bonecos? Haveria uma inter-relação entre as linguagens literária e de manipulação de formas animadas?

Durante algum tempo fui editor de uma revista universitária sobre teatro de animação, e fui amadurecendo a ideia de escrever algo sobre o assunto, até que certa noite acordei de sonhos intranquilos e resolvi que era a hora. Acho que todos as linguagens se complementam, não seria diferente entre a animação e a literatura. Aliás,  aprendi muito com os conceitos de contenção da animação.

Como esses conceitos passaram a atravessar ou influenciar sua escrita?

Um romance ou um conto ou um poema podem surgir de uma imagem, de uma música, de uma história ouvida, de uma memória verdadeira ou falsa. Tudo pode ser material para a ficção, e como somos a soma das nossas referências, quanto mais e melhores elas forem, melhor saberemos lidar com o que queremos ou não em nossa escrita. Para mim, literatura é sobretudo risco, você corre riscos a todo instante, na escolha dos personagens, da abordagem. Eu nunca escolho o caminho mais fácil, sempre gosto de me desafiar, então meus narradores são sempre muito desafiadores para mim. Eu sempre vejo meus livros como móbiles, algo mais orgânico, e não como algo plano, então esse livro é, na verdade, muitos livros. No meu livro anterior, As fantasias eletivas, a fotografia é um elemento da narrativa, e agora temos o teatro, é preciso contaminar-se. Perceba o quanto o cinema aprendeu com a literatura, com o teatro, com a dança, com as artes visuais, e assim vice-versa. A literatura parece que quer sempre se proteger, se contaminar menos, jogar sempre sua própria regra, e eu não acho justo. Gosto de escrever olhando fotografias, tentando entender obras de artistas visuais contemporâneos ou decifrando músicas.

Viva a contaminação, a infecção.

Carlos, no livro, torna bastante visível essa dualidade do escritor produtivo e circulador, que publica, transita por eventos, escreve para revistas, recebe adiantamento de editora, torna-se pequeno editor, enfim, é detentor de certa áurea de sucesso ou de produtividade que convive com as dificuldades da sobrevivência e do próprio processo da escrita. Você também tem se lançado em frentes distintas — é editor, escritor, produtor cultural. Como tem sido essa experiência múltipla? Ela está bastante presente nesse livro…

São posições diferentes, espaços e jogos diferentes. No terreno da escritura, não há conciliação: não há pai, mãe, amigo, nada que me faça mudar uma vírgula contra a vontade, é onde não faço concessão alguma, é preciso liberdade de pensamento, na linguagem: a escrita é uma experiência individual mediada pelo conhecimento, então é preciso ir e vir. Eu comecei a publicar muito cedo, e como não era e nem sou nenhum gênio da escrita, acabei cometendo os erros mais comuns do início da carreira literária: ingenuidade, presunção, artificialidade. Somente a partir de Ensaio do Vazio, de 2006, comecei a achar o meu tom, a minha medida. Eu sempre soube que minha vida seria ligada à literatura, persegui isso desde a mais tenra idade, e mesmo nos momentos mais ferrados, quando era um recepcionista falido de hotel em Balneário Camboriú ou um vendedor de roupas baratas em Jaraguá do Sul, eu erguia a cabeça e me dedicava mais e mais a ler e a escrever. E como o Stoner, personagem de livro homônimo do John Williams, eu aguentava as porradas da vida porque a literatura era o caminho, a vida estava em segundo plano.

Sinceramente, o fato de eu trabalhar com literatura, não me ajuda no processo de escritura, e só me torna mais neurótico.

Não acho que escritores devem organizar eventos ou coisas do tipo: eu faço porque gosto, porque faz parte do meu perfil de agitador cultural, sou inquieto e movido a desafios, então vivo me metendo e criando festivais, feiras, cursos, mas porque eu gosto, é a minha pulsão. Mas para escrever, nada como o silêncio e a distância da vida literária. Gosto de testar meus limites e o dos leitores também. Como editor eu preciso ver o que é melhor para o texto, mas também para o autor e para a editora, seguir uma linha editorial com coerência. E como produtor cultural, preciso seguir os objetivos de cada projeto e executá-lo da melhor maneira possível. A única coisa em comum entre os três papéis, no meu caso, é que eu encaro os três com extrema seriedade.

No romance, temos Arthur, Lauro e Carlos se lançando em buscas por possibilidades, correndo riscos, enfim, buscando e reinventando suas identidades (na arte, na vida) permanentemente. Naquela mesma entrevista de 1956, Beckett fala que qualquer um que prestar o mínimo de atenção à sua própria experiência vai achar que se trata da experiência de um “não conhecedor”. Usar elementos da própria vida seria uma forma de se haver com esse desconhecimento, e, ao mesmo tempo, a escrita de si pode ser um caminho que nos leva para o fora, uma identidade em transformação constante?

Athur, Lauro e Carlos fracassaram em diversos momentos de suas trajetórias, e essa é a história que interessa, a dos fracassos, pois a trajetória da vitória é geralmente única e sempre tem alguém para contar, mas a dos fracassos, não. Estamos sempre nesse teatro sem ensaios que é a vida e falar do outro é também falar de mim, da minha experiência de mundo, e falar de mim é sobretudo falar do outro, mas ambos estão nesse caminho “não conhecedor” do Beckett. Eu não dissocio vida e literatura, as duas experiências tem o mesmo peso para mim, e não quero optar por uma ou por outra: se a literatura pode mudar a minha vida porque a minha vida não pode mudar a visão que tenho da literatura? Então essa transformação é constante sim, ainda bem.